domingo, 27 de maio de 2012

Fui um réptil?

Leila Míccolis

(crônica publicada no YuBliss)



Em criança, nunca me dei bem com brincadeiras do faz-de-conta. Achava um reino um tanto desconfortável, onde a realidade, em confronto com a imaginação, revelava-se frustrante e insuficiente. Para mim, era muito difícil imaginar, nas panelinhas, comidinhas inexistentes, ou então ensinar bonecas mudas, que me olhavam alheias e indiferentes e nunca aprendiam absolutamente nada. Entendo agora que para mim, na época, o faz-de-conta assemelhava-se a certas propagandas enganosas que assistimos hoje na publicidade.
O nunca encenar “teatrinhos” na infância possivelmente marcou muito a minha postura diante da vida, fazendo-me distinguir no dia a dia fantasia da realidade, não para dicotomizar-me, mas para aprender a trabalhar com os diversos ângulos de mim, simultaneamente: eu e meus múltiplos. Nem sempre é fácil na vida real saber onde acaba o “se” e onde começa o “agora”, talvez porque a realidade, com suas diversas interpretações, pode ser tão fluida quanto a fantasia. No entanto, ciente dos meus mundos paralelos, acabei evitando cair na armadilha de protagonizar papéis na vida real, me tornando uma personagem de mim mesma.
O fato inconteste é que sempre preferi o diálogo com os livros. Eles me mostravam, por exemplo, o habitat dos peixes, cheio de cores, formas e magia. Como eu adorava o colorido mundo submarino com seus animais e sua flora exótica. Antes mesmo de saber ler, eu me deliciava com as ilustrações, imaginando histórias das profundezas abissais. Isto era bem diferente do mero faz-de-conta. O oceano existia, os peixes também, e eu apenas inventava aventuras. Os livros me revelavam o mundo real, enquanto o faz-de-conta me soava como um palco, em que só se encenava monólogos. A ficção, portanto, era uma forma de eu própria transitar pelos universos e não de moldá-los à minha imagem e semelhança. Esta diferença de perspectiva fazia muita diferença. Sempre fez. Nas fotos coloridas havia diversos espécimes de animais, inclusive a tartaruga marinha. Pronto: cheguei onde eu queria.
Falando no facebook sobre meu micro, lento que nem tartaruga, revelei ao Chico Abelha que minha relação com elas era muito pouco amistosa, digamos até conflituosa. Então ele perguntou: “como analisaríamos uma mulher que adora gatos e cachorros, mas tem horror crônico a tartarugas...? rsrsrssrs! freud explicaria?” Devidamente instigada, fiquei de escrever sobre o assunto: a rara exceção do meu amor aos animais. Não se trata porém de desamor, é bem mais complexo: algo me incomoda profundamente nelas e, ao nos depararmos frente a frente, face a face, olho a olho, ocorre de imediato o processo atração x rejeição: elas correm (maneira de dizer) em minha direção e eu corro em direção contrária a delas. Não me importo com o tamanho: mesmo que você me apresente a mais meiga, suave e menor tartaruga do mundo na palma de sua mão, provavelmente me sentirei ameaçada. Lembro-me de que, uma vez, visitei alguém que tinha um cão feroz e uma tartaruga no quintal, e quando a dona da casa me disse: – “um momento que vou prender o cachorro”, eu pedi: – “não, por favor, prenda apenas a tartaruga”... A gargalhada foi geral, porque se tratava de uma tartaruga minúscula, “inofensiva” segundo sua dona; mas só me senti segura com a tartaruga presa no banheiro – nem preciso dizer que minha visita demorou o mínimo possível para não estressar a tartaruguinha.
Volto ao início: mentira, invenção, teatralização, fantasia, mesmo sendo bem difícil às vezes de perceber a diferença, elas ficam muito claras se as transponho para minha ligação (des)afetiva com as tartarugas. Vou dar exemplos: mentira é dizer que amo tartarugas. Invenção seria alardear que salvei alguma de morrer devorada por um tubarão; que tirei alguma foto sorrindo acariciando o casco de alguma delas, é pura teatralização (inclusive, se virem alguma fotografia assim, saibam que provavelmente ela foi editada...); e, por fim, trata-se de fantasia quando pratico nado de peito (o tipo de estilo que eu mais gosto) e me sinto como se fosse uma tartaruga marinha, o que ocorre frequentemente. E aí realmente entra Freud, meu caro Chico: até meu próprio signo capricórnio (a cabra marinha) indica que devo ter vindo do mar (meu sonho recorrente é sempre com ele) antes de pisar na terra. Não que eu queira fazer aqui nenhum tipo de regressão, mas pode ser até que em alguma encarnação passada, através da metempsicose transmigratória, eu tenha sido uma tartaruga que acabou virando sopa... (não entro em hipótese alguma em restaurantes que pescam lagostas ou peixes vivos, tipo: pesque e pague); daí se explicaria o total incômodo que sinto ao ver uma tartaruga – revivo a dor ancestral da profanação: ser caçada, morta, esquartejada e comida publica e impudicamente à mesa? – e também minha enorme resistência em sentir prazer de degustar quaisquer tipos de “frutos do mar”...

(Publicado com a autorização da autora)


quinta-feira, 24 de maio de 2012

Carta para quando eu for velha

Kika Coutinho


Um dia, e não deve demorar muito, vou notar fios brancos no meu cabelo. Pior: um dia, vou procurar se restaram alguns fios pretos  no meu cabelo. Vou sentir algumas dores nas pernas, ou nas costas, ou a carga da vida será pesada para mim.

E,  se eu pudesse deixar um recado para essa mulher que eu serei então, eu pediria, talvez, para que ela fosse doce. Quando eu for velha, desejo manter alguma alegria, ainda que amargura me seja tentadora, que eu possa ver alguma beleza na vida.

Que eu possa ver beleza em mim mesma, mesmo que meu rosto esteja amassado, os olhos um pouco apagados, que eu me lembre de quanto achava ridículo as mulheres lotadas de botox,e não caie na armadilha de esticar-me toda, para tentar ser aquilo que não preciso mais ser. Que eu me lembre desse tempo de hoje, e aceite essa outra forma de beleza, senão sem dores, com muita dignidade.

Que eu tenha mãos firmes para passar base e, quiçá delineador, que eu saiba o valor e o momento de um bom perfume, de um bom penteado, de uma roupa bem cortada. Que eu não caia na tentação de vestir-me como uma velha, ou – pior – que eu não caia no ridículo de usar roupas parecidas com as das minhas netas.

Que eu não implique com a vida, com o tempo, com o meu companheiro. Aliás, se ele tornar-se irritante, diabético, surdo ou o que quer que seja, desejo lembrar-me das promessas antigas, do companheirismo de uma vida, das inúmeras vezes em que eu, jovem, fui irritante e surda, e ele esteve ao meu lado. Que eu possa relevar as frases repetidas, que eu tenha paciência para as pequenezas dele, e procure evitar as minhas. Que eu saiba rir da vida, de mim mesma, de nós dois. Mesmo que as piadas sejam péssimas; as gargalhadas não deveriam tornar-se tão raras quanto as caminhadas ou as corridas. Que eu possa ainda, fazer meu companheiro rir, mesmo que me dê uma preguiça danada.

Que eu não cobre dos meus filhos, netos, amigos, mais do que eles me ofereçam. E que, em sendo oferecido pouco deles a mim, que isso não me amargure, mesmo que seja infinitamente injusto e cruel – e deve ser – que eu tenha aceitação e alegria. Que eu tenha assunto e conhecimento, que eu tenha prazeres e encantamentos, sabedoria e discernimento.

Que eu me mantenha lendo bastante, para que eu possa achar assunto nos jornais, nas revistas, nos novos e nos velhos livros. Senão me restar amigos, ou amores, que o conhecimento me salve de uma rotina infinitamente chata e comprida.

Que eu aprenda a apreciar flores, comida, música, ou qualquer uma dessas coisas oferecidas em abundância pela vida, porque, assim, mesmo que me falte o resto, ainda terei o gosto ou o som do que me faz feliz.

E, enfim, se eu pudesse deixar um último recado a essa velhinha que eu serei, eu pediria que ela lembrasse da menina que foi um dia e que fosse gentil com essa moça, com seus próprios erros, acertos, escorregadas e tentativas vãs.  Que ela não fosse muito rígida com a vida, e nem com essa jovem abusada e tola que, um dia, sentou-se num jardim ensolarado, para deixar-lhe uma pequena carta, cheia de palavras e idéias que, talvez, um dia, não façam, absolutamente, o menor sentido.

(Do livro "ACABA NÃO, MUNDO")

segunda-feira, 21 de maio de 2012

DILEMA

Marco Bastos


Riacho na sombra - Courbet















Eu trago nesse canto em pauta, por dilema
sofrido pensamento à beira dum riacho
com tocha que se acende em rochas sem poema
perdido em meu conflito aflito onde me acho.

Se encontro em desencontro a trama do problema
começo e já reparto a questão de alto a baixo
divido bem o todo em partes-teorema
e são coisas que igualo a causas que não encaixo.

Sinto a dualidade e a vida se bifurca
em cada encruzilhada à frente do caminho
- no canto do meu fado a vida quer mazurca.

À margem do riacho ao olhar redemoinho,
a voragem que cega à noite me conspurca
querendo alinhar água e água é desalinho.


 


sexta-feira, 18 de maio de 2012

Imprecisões

Luiz Eduardo Caminha


Reminiscência arqueológica, Salvador Dalí


Quem sou eu,
este ser inerme,
que faz da voz,
arma contusa?

Quem sou eu,
este ser inerte,
que mexe, remexe,
látego impiedoso?

Quem sou, afinal,
este ser sereno,
que num ímpeto se faz,
irascível mordaz?

Oh, cruel, inominado e controverso ser,
Verso, reverso, homo erraticus et perdidit!

Acaso uma criatura?
Erro da Criação,
insigne animal,
pedestal de areia?

Quiçá um dia,
de tanto me procurar,
alcance, almejo,
lugar pra descansar.

Desta busca infindável,
deste contínuo rebuscar.
Neste dia, quiçá, porvir,
Deus se ponha a me perdoar.






quarta-feira, 16 de maio de 2012

Encruzilhada

Antonio Manoel Abreu Sardenberg

Os mistérios do horizonte - René Magritte














Na encruzilhada da vida,
A dúvida bate tão forte
Que a gente perde o norte,
A reta, a rota, o rumo...
Perde o equilíbrio, o prumo,
O tino, o jeito, o porte.
Perde o fio da meada
E, para achar a estrada,
É preciso muita sorte.

A razão com seu jeitinho
Fala pra gente baixinho
Qual o caminho mais certo,
Qual o atalho mais perto,
Onde fica o paraíso!
Aí vem o coração
Cheio de sonho e paixão
A discordar do juízo...

A incerteza aparece.
Nosso peito então padece,
Sem saber a quem ouvir.
E pra gente se encontrar,
Aonde devemos ir?

Vamos partir para o norte,
O leste, o centro, o oeste
Ou esperar que, na noite,
Naquele céu todo azul
Brote o cruzeiro do sul
Nos apontando ao certo
O nosso porto seguro
E nos tirar do apuro,
Nos resgatar do deserto

E com a lição aprender
Que, em toda encruzilhada,
Há uma direção errada,
E outra que é a certa,
Que nos conduz a chegada!


(Poema publicado com a autorização do autor)

sábado, 12 de maio de 2012

A poesia de Rubens Jardim


COMO UM PRESENTE

No aniversário de minha mãe









Rubens Jardim


O que eu vou guardar da tua infância
Não é a superfície mansa e lisa da tua pele.
Também não é o olhar livre da menina
Que te habita desde a origem da vida.

O que eu vou guardar da tua infância
É uma coisa indizível e impartilhável.
Talvez seja a primeira expressão lírica
Que impressionou tua alma. O grito
Sem som. O espelho sem imagem.
A palavra sem papel.

O que eu vou guardar da tua infância
não é o eternizado chão de terra
Onde se achava inscrito o teu futuro.
Também não é a casa da meninice
Anoitecendo à luz de velas e lamparinas.

O que eu vou guardar da tua infância
É uma coisa indizível e impartilhável.
Talvez seja a fragilidade do teu rosto
Onde o destino jamais poderia dar
Uma bofetada. Ou ainda o abismo
Sem a queda. A escada sem degrau.
A porta sem a parede.

O que eu vou guardar da tua infância
Não é a paisagem real e transitiva
Suspensa em plataforma de súplica.
Também não é a provisória criança
Maravilhada diante das lições da eternidade.

O que eu vou guardar da tua infância
É uma coisa indizível e impartilhável.
Talvez seja a tua graça caminhando
Pela mesma trilha dos ventos nas montanhas.
Ou ainda as estrelas sem a noite.
As crianças sem o medo. Os cachorros sem quintais.

O que eu vou guardar da tua infância
É o substrato que te acompanha
Nessa viagem rumo ao desconhecido.
É o teu modo pleno de estar aqui
Revelando sinais do inaparente e do inexpresso.


(Poema publicado com a autorização do autor)


terça-feira, 8 de maio de 2012

ALGUM DE VOCÊS ME PEDIU UM SONETO?












Maria João Brito de Sousa


Ouves o Sol a rir, junto à tapada?
Nem sei por que me apresso a despedir
Se acabo de inventar um sol a rir
E assim, quase a partir, nem me dói nada…

Destas conversas - sempre à hora errada! -
Dizendo o que não posso definir
Ou evocando um tempo de partir
Que um dia quis levar-me antecipada,

Deixo este não-sei-quê que não me assusta,
Que me leva e me traz – pouco me custa… –
E acaba por gravar-me um verso ou dois

Que a chibata me vibra, em marca adusta,
Como se fosse só pr`a tornar justa
A dor, menor, que irei sentir depois…


(Soneto publicado com a autorização da autora)