quinta-feira, 31 de julho de 2014

A poesia de Corália Míccolis




















A TI
                À minha mãe

Tu foste a inspiração, a sinfonia
Que banharam minh'alma apaixonada.
Se em meus cantos há trechos de harmonia,
Devo-os a tua voz, doce, inspirada.

Tu foste a meiga imagem graciosa
Que inundou de sonhos minha mente.
Pelos sons de tua harpa harmoniosa
Eu da minha afinei o som plangente.

Tu foste o brando fogo sacrossanto
Que da razão o estro me incendeu.
Se em meus versos se encontra algum encanto,
Embora de minh'alma, é todo teu.

Tu foste a pura e cândida harmonia,
Que constante em minh'alma residiu.
Se em meus cantos há terna melodia
A ti pertence, só de ti partiu.

Tu foste, enfim, a musa encantadora
Que suave inspirou minha razão.
Se há estrofes de cor imorredora
São devidas a tua inspiração.

Se aqui não vês o nome teu brilhando,
Em letras cintilantes de ouro e luz,
Vê como em cada estrofe soletrando
A tua imagem plácida transluz.

Aceita pois, imagem de minh'alma,
Os versos que, de longe, te escrevi.
Se um dia eu alcançar da Glória a palma
Pertencerá unicamente a ti.

Corália Míccolis
Publicado em "Brasil Feminino" nº 3, ano 1º, abril de 1932, RJ


Cantiga


Oh! violão, meu amigo,
Contigo me sinto bem.
Por tua voz, eu consigo
Esquecer a voz de "alguém"...
 

Canta e chora violão
Minha fanada ilusão.


A lua quando aparece
A terra logo clareia.
Mas se a minh'alma entristece,
Ela comigo pranteia.
 

Canta e chora violão
Minha fanada ilusão.


Viver chorando é meu fado,
Minto no canto, a sorrir.
E tu, violão amado,
Compreendes meu sentir.
 

Canta e chora violão
Minha fanada ilusão.
 

Violão, calas meu pranto,
Fazes-me, tu, tanto bem!
Acompanhas o meu canto:
Se choro, choras também.
 

Canta e chora violão
Minha fanada ilusão. 

Corália Míccolis 
27/07/1935


História de um palco

Um palco simples, que, sem ser preciso,
ofereceu a todos seu encanto:
— comédia e risos, danças, grito, pranto —,
feito num dia, quase de improviso,
sem preparar-se ao Sonho e ao sorriso,
sorriu, sonhou e deles fez seu canto!


Viveu o palco um ciclo de vitórias;
hoje ele velho, ao léu, abandonado,
relembra os tempos áureos do passado,
em que entre mil guardou supremas glórias,
ao dar ao povo um pouco das histórias
que contarei do herói aposentado.


Juntos nos vem à mente a mocidade:
nele encenando cantos de coragens,
ali deixou também suas mensagens,
de Fé, Protesto, Amor e de Verdade...
Relembra o palco, ainda com saudade,
da bela peça, algumas das passagens:

 
"E nesta luz, seus archotes
"tendo acendido, marcharam
"pela noite — e não pararam.
"E marcham, marcham, não param.
"E cada archote que tomba
"cem braços levantarão!"
 

"E o mundo inteiro, cantando,
"liberdade a nascer manhã..."
 

Ouviu também o moço acabrunhado,
um personagem simples, sertanejo,
dizer, amante e cheio de desejo
à amada sua, em gesto apaixonado:
— "Teu bêjo, amô, é tão aducicado
que é çucarado o gôsto do teu bêjo...


Recorda cenas do Brasil antigo,
do escravo preso ao mando do feitor:
com ele geme e sofre a mesma dor:
— "Trabalha, negro!" E enquanto do inimigo
recebem palco e homem tal castigo,
unem-se as vozes num imenso amor.


Num dos caminhos desta sua andança,
o corpo seu, a se movimentar,
lembra o batuque quente; e no sambar,
retendo a cena ainda na lembrança,
o palco baila, baila a mesma dança
que em tempos idos viu representar:


        "Olha o bambo-do-bambo-bambu-bambeiro,
        "olha o bambo-do-bambo-bambu-bambá,
        "olha o bambo-do-bambo-bambu-bambeiro,
        "do-bambo-bambu-bambeiro,
        "do-bambo-bambu-bambá..."


A gargalhada em vez do antigo canto,
muda a cena, aos poucos faz-se ouvir:
começa lenta e, rápida, a seguir,
pra terminar num verdadeiro pranto: 


— "Podes partir, pois não não tens encanto...
E tu partiste... Para quê sorrir?"


Já muita gente o comparou à vida
e nele foi feliz, já muita gente.
Felicidade... — velha, meu presente,
tão pequenina, ou mesmo assim perdida —,
mas sempre inteira e sempre tão querida,
que por mais presa, mais independente...


Repousa o palco, folga o seu trabalho,
cenário triste, heróico ou de agonia,
com "novas" cenas para um novo dia...
Palco sonhando um sonho já contado
— neste seu pranto, um mundo de passado,
no seu passado, um mundo de poesia...

Corália Míccolis
(*) Poema de 22/08/68, encontrado justo no "Dia do Teatro", em 27/04/2002