sexta-feira, 23 de agosto de 2013

PARA FAZER UM SONETO

Carlos Pena Filho* 


Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
Dentro da escuridão a vã certeza,
Ponha tudo de lado e então comece.


*Carlos Pena Filho, poeta do azul como ficou conhecido, era pernambucano do Recife, autor de “O tempo da busca”, “Memórias do Boi Serapião”. Foi um renovador do soneto na temática e, sobretudo, na linguagem, carregada de oralidade, essencialmente musical e de forte apelo pictórico.

Fonte: Jornal de Poesia, de Soares Feitosa

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Poeta Castrado, não!


José Carlos Ary dos Santos














Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo, dromedário
fogueira de exibição
teorema, corolário
poema de mão em mão
lãzudo,  publicitário,
malabarista,  cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado, não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo,
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura, como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria,
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala…
é tão vulgar que nos cansa ...
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história…
a morte é branda e letal ...
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia? …
Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?! …
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo, mau profeta
falso médico, ladrão
prostituta, proxeneta
espoleta, televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado, não!

(Poema enviado por Eugénio de Sá)