Ao pé do Anhangava
© Airo ZamonerQuando cheguei por estas plagas, ele já estava aqui. Achei, desde o primeiro dia, que era metido a besta! Pudera! Talvez por méritos próprios – tenho que admitir – destacava-se de tudo e de todos. Apesar dele, fixei morada, cansado, lá de onde vim, da fumaça compulsória. Não suportei mais o escândalo sonoro e escancarado de todos os dias a envenenar minha janela fosca de resíduos aéreos, melentos, sujos.
Aqui, entre margaridas, canarinhos, bem-te-vis, pica-paus, corujas, preás, esquilos, lebres que batem em minha janela lucidamente transparente, me deparo, vez ou outra, com este senhor imponente que insiste despudorado em se exibir a todo instante.
Tentei uma conversa dia destes. Inútil. O danado nem me respondeu. Estava enfeitado com um véu branco, tal qual noiva ansiosa. Até desconfiei da masculinidade do dito cujo. Os mais velhos daqui me garantiram que não era nada disso. Era só mais uma crise de excentricidade, própria dos famosos. E fama não lhe falta!
Não tenho nada contra famosos. Tenho sim, é contra a soberba, a prepotência, a hipocrisia. Era disto que eu pretendia falar. Queria dar um “chega-pra-lá” nesse arrogante. Quem sabe eu pudesse descobrir alguma coisa sobre seus mistérios. E ele tem mistérios! Mas afinal, qual o famoso ou famosa que não os tem? É por isto que as fofocas se propagam tanto por ouvidos e olhos afora. É a volúpia em descobri-los. Talvez seja por isto que dele não se consegue tirar muita coisa.
Manhã dessas aconteceu o que eu tanto esperava. Levantei cedo. Mais cedo que o usual. Gosto deste ar virgem, permeando meu recanto nesses instantes adivinados, já que homens e mulheres dormem incautos, realimentando esperanças de alcova. No entanto, era realmente muito cedo. A penumbra ainda se divertia, zanzando como criança, enquanto a noite meio nervosa, já sumindo no horizonte, a chamava aos berros. Criança é assim mesmo quando brinca! Não adianta gritar.
Espreguicei-me, pés descalços na grama fria e dei de cara com ele. Que petulância! O que estaria fazendo ali o intrometido? Antes de mostrar desagrado, aproveitei a ocasião para falar com aquele impertinente. Depois de um cumprimento titubeante, ele me surpreende com resposta amável, segura, quase simpática. Talvez o comportamento cortês tivesse a ver com aquele véu, hoje ausente.
Confesso que não esperava tanta educação de alguém com fama de empáfia, de imodéstia, de presunção. Respondi meio desconfiado e aproveitei a deixa, dizendo que há muito esperava a oportunidade para falar com ele.
Sorriu um sorriso de bondade inusitada, de amabilidade fresca. A coisa se amansou e o papo foi longe. A cada palavra, mais agradável e cheio de cortesias ele se tornava.
Quando a gente fala com alguém por um longo tempo, consegue interpretar gestos pequenos, olhares acanhados, sorrisos e tristezas embutidos no emaranhado de expressões escuras. Percebi algum incômodo saracoteando em sua alma. Com jeitinho, com sutileza, acabei tocando naqueles incômodos. Aí ele se abriu! Confessou-me tanta coisa! Falou-me de suas mágoas pela indiferença de muitos, pelas ofensas que recebe, pelas agressões gratuitas que colocam em risco sua saúde, sua vida.
Nunca imaginei que ele, famoso como ninguém, pudesse estar sentindo essas coisas, tão auto-suficiente aparentava ser. Quanta gente tem a cara de um jeito, mas a alma é de outro! Mudei de idéia naquela manhã. É assim mesmo!
Entrei em casa que o aroma do café já se espalhava. Não sei porque, mas não queria ser flagrado neste colóquio. Despedi-me com pressa, prometendo voltar e conversar mais vezes.
Agora, todas as manhãs, dou bom dia ao Anhangava, esse morro que sofre silencioso, mas se expõe majestoso, exibindo-se para todos os cantos desta Quatro Barras dos meus amores.
(texto publicado com a autorização do autor)