sábado, 27 de novembro de 2010

Cartola, no moinho do mundo


Carlos Drummond de Andrade
(In Jornal do Brasil, 27.11.1980)

A crônica a seguir, de Carlos Drummond de Andrade, é um tributo ao compositor Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980). Foi publicada no Jornal do Brasil em 27/11/1980, três dias antes da morte do criador de "As Rosas Não Falam".


Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo.

Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.

Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na Floresta (música de Sílvio Caldas).

Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.

A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.

Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:

Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.

Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.

* * *

Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.

Carlos Drummond de Andrade





O Mundo é Um Moinho
Cartola
11.10.1908 - 30.11.1980

Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar

Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho.
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Crônica de Rubens da Cunha


OURIÇOS

O ouriço é um bicho poético por natureza porque parece intocável. Há nele a alegoria perfeita de que tudo tem, no mínimo, dois lados, duas possibilidades de olhar. O ouriço e suas costas cheias de pelos-espinhos, o bicho capaz de se enrodilhar e virar uma bola de agressão, de dor, de medo para quem chega perto, é o mesmo bicho macio e delicado, um bicho frágil, angustiado por sua condição dupla: espinho e candura.

Muitas pessoas são assim, ouriçadas. Obviamente algumas se tornaram apenas espinhos, sem dentro, sem espaço macio, mas outras não, outras carregam nas costas o peso dolorido da vida, e mal ou bem, passam adiante esse peso, mas também tem uma elegância, uma vontade de serem mais leves, menos secretas em suas qualidades.

Somos rasos por natureza, nos apoiamos muito nas aparências, então ao vermos um ouriço só vemos seu externo, seu perigo, pouco vemos o dentro, o lado encostado à terra, o lado que precisa, de uma forma ou outra, ser protegido. Na verdade, somos todos meio ouriços, somos todos meio casca agressiva, seja para nos mantermos vivos e dignos, seja pelo medo de sofrer mais ainda. A questão fica por conta da falta de equilíbrio de alguns: muitos se disfarçam em espinhos que se transformam em um deles. É o verso de Fernando Pessoa revivendo, reafirmando uma verdade: “Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. / Quando quis tirar a máscara, / Estava pegada à cara. / Quando a tirei e me vi ao espelho, / Já tinha envelhecido.” Esse é o perigo, uma vida se enrolando, se fazendo bola de espinho, se fazendo máscara, para depois descobrir-se velho, descobrir-se azedume e impossibilidade de retorno. Não que tudo tenha que ser sempre doçura, candura ou uma vida rimada no sentimentalismo de Poliana, mas algum bom senso, algum espaço para entregas, para confianças, para o uso delicado e poético da vida temos que ter.

Viver é ter sempre esse cuidado de não deixar que a máscara se apegue à cara, que o espinho não atravesse a pele e atinja algo dentro. Mas também tem o outro, afinal existimos em função do outro. Ninguém é uma ilha, já anuncia a séculos o clichê, somos comunidade, e isso nos ouriça, isso nos faz enrodilhar muitas vezes. Viver é conseguir, de uma maneira ou outra, que o enrodilhamento, que o espinhamento, não seja total, não seja para todo o sempre, não seja a única maneira que temos de contato com a pele do outro. As defesas são justificáveis, o problema se estabelece quando defesas se transformam em ataque, ou quando o ataque é a melhor defesa, dai as relações se estremessem, daí somos apenas espinhos nas bocas dos cães, nada mais. Toda a delicadeza, toda a maciez se perdeu, pois deixamos nos outros apenas nossa casca, nossa máscara, nossa dor apegada à cara. Mostrar o rosto verdadeiro, mostrar o dentro do corpo, muitas vezes, é um ato bem mais corajoso e libertador do que nos protegermos com os espinhos, mesmo que para isso tenhamos que baixar as defesas, tenhamos sair um pouco da zona de segurança e invadirmos, frágeis e delicados, o desconhecido.

(Texto publicado com a autorização do autor)


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Morre o escritor Condorcet Aranha

CONTRATEMPO


Condorcet Aranha
29.01.1940 - 19.11.2010

Não sei quando começou o tempo,
Sequer, o tempo que ele durará,
Mas, eu preciso perceber, em tempo,
Qual é o tempo que terei, no tempo,
Para fazer o que pretendo, a tempo.

Não vou passar aqui somente um tempo,
Na infinidade que o tempo tem?
Se aproveitar o tempo e me tornar saudade,
No coração aberto de um outro alguém,
Deixo-o na vida para novo tempo.

Então somando todos nossos tempos,
Se, prosseguirmos a tornar saudade,
Nossas saudades, formarão um tempo,
Por tanto tempo que nem sei contar,
Porque por certo não terei mais tempo.

Então, enquanto não me acaba o tempo,
Até ficar apenas como uma saudade,
Vou me manter no máximo do tempo,
Para aumentar a soma das saudades,
Salvo aconteça, assim... Um contratempo!

Se não deixar meu tempo no antetempo,
Vou consumi-lo até nos entretempos,
Para curtir milhões de passatempos.
Mas, se eu partir no “raio” de um destempo,
Serei saudade, apenas, do meu tempo.



(Poema extraído de sua página pessoal em Blocos Online, onde poderá ser homenageado com a leitura de seus poemas)