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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Crônica de Leila Míccolis


Sob o céu de Maricá

© Leila Míccolis

Sabe aquela música “Eu quero uma casa no campo”, do Zé Rodrix e do Tavito? Pois eu nunca quis. Sempre fui agitadamente urbana, e vir para Maricá, há doze anos, não foi opção, foi solução (que eu supus temporária) para nossa complicada situação financeira: sair de aluguel, condomínio, gastar menos, na época. Viemos para cá por questão de sobrevivência, apenas. Nunca pensei em morar no interior, em ter porco, cavalo, galinha, peru, marreco, porquinho da índia, coelho, ovelha e cabra, bromélias, cactos, gás de bujão e água de poço. Gostava do cheiro de gasolina e da vida agitada a mil por hora. Aqui, a quietude impera: a ruazinha não-pavimentada também é pouco movimentada: nem carteiro passa. O “êxodo” rural ainda coincidiu com uma série de rompimentos emocionais, o que dificultou e tornou mais lenta a minha adaptação.

O começo abrupto desta nova fase foi terrível, pois era uma casa que, de habitável, só tinha a sala, e assim mesmo sob um telhado que parecia ter dificuldades em se manter no lugar; havia apenas a estrutura arquitetônica, muita pedra, e o chão era de terra batida. Também não havia árvores, e o fornecimento de energia elétrica ainda era bem mais precário que hoje... Um desafio e tanto. A primeira vez que entrei na construção inacabada, vi sair um monte de morcegos de um cômodo: era ao mesmo tempo aterrorizante e fascinante: eles voavam em “xis”, como se fossem os raios lasers que vemos em filmes de assalto a bancos, nos cinemas... Foram tempos difíceis que exorcizei fazendo um livro artesanal, praticamente inédito, chamado: “Sob o céu de Maricá”, em que falava principalmente de moscas e outros insetos não-identificados. A única distração destes primeiros tempos era eu, Urhacy e Mônica nos reunirmos em torno das fogueiras que fazíamos diariamente. Esses eram momentos verdadeiramente mágicos.

Maricá não é tão longe assim do Rio (do Fundão, onde ainda faço meu Doutorado na UFRJ, levo trinta a quarenta minutos); a distância de uma hora de estrada, porém, me “obrigou” a ficar muito mais seletiva: compareço pouco a lançamentos de livros, eventos culturais e badalações do gênero. Com isto, talvez, tenha adquirido fama de “distante”, ou de “esnobe”. Dá-se, também, que para o pessoal da capital, ter que atravessar a ponte Rio-Niterói é quase como chegar em outro planeta. Então, quando compareço a algum lugar, provavelmente como revide, pensando que me agridem, há sempre os que me perguntam se me aposentei, por estar morando no mato... Rio e cito o começo do poema do Alberto Cunha Melo chamado Um cartão de visita: “Moro tão longe, que as serpentes / morrem no meio do caminho. / Moro bem longe: quem me alcança / para sempre me alcançará”.

Cunha Melo termina este seu belo poema, dizendo: “Nada será fácil: as escadas / não serão o fim da viagem: / mas darão o duro direito / de, subindo-as, permanecermos”. Sim: é justo esta sensação de permanência que me habita. Hoje, amo este lugar e, apesar dos inúmeros problemas relacionados principalmente com uma péssima infraestrutura local, não gostaria de morar mais na capital, por vários motivos. Entre eles, cito alguns: lá não tem esse ar puro, este verde nos rodeando por todos os lados, este espaço amplo para conviver com animais, estas noites estreladíssimas, esta lua absurdamente linda, esta adorável piscininha, esse orquidário, essa natureza exuberante, estes pirilampos, estas borboletas coloridas, este paraíso terrestre sempre ao alcance da nossa rede...

A mudança para o “sertão” detonou transformações bastante radicais em meus valores, em minhas perspectivas e até em meu modo de encarar problemas, porque antes eu vivia um tanto superficialmente; agora que eu sei como se ergue uma parede, para quê serve a argamassa, de quê é feita uma pilastra, sei também como podemos ficar verdadeiramente alegres vendo a primeira torneira da casa funcionar, jorrando água. Simples assim. Viver aqui me fez valorizar a vida a partir de cada gesto e de cada objeto que antes eu só notava quando me utilizava dele. Deixei de prestar atenção às funções das coisas para perceber melhor a substância das quais elas são feitas. Realmente, uma grande transformação, ocorrida de dentro para fora. Com isto, não só a casa foi erguida a partir do zero, como eu também. E é por isto que para mim, hoje, Maricá é sinônimo de colheita.

(Texto publicado com a autorização da autora)

Confiram outras crônicas de Leila em seu blog no YuBliss.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Crônica de Rubens da Cunha


OURIÇOS

O ouriço é um bicho poético por natureza porque parece intocável. Há nele a alegoria perfeita de que tudo tem, no mínimo, dois lados, duas possibilidades de olhar. O ouriço e suas costas cheias de pelos-espinhos, o bicho capaz de se enrodilhar e virar uma bola de agressão, de dor, de medo para quem chega perto, é o mesmo bicho macio e delicado, um bicho frágil, angustiado por sua condição dupla: espinho e candura.

Muitas pessoas são assim, ouriçadas. Obviamente algumas se tornaram apenas espinhos, sem dentro, sem espaço macio, mas outras não, outras carregam nas costas o peso dolorido da vida, e mal ou bem, passam adiante esse peso, mas também tem uma elegância, uma vontade de serem mais leves, menos secretas em suas qualidades.

Somos rasos por natureza, nos apoiamos muito nas aparências, então ao vermos um ouriço só vemos seu externo, seu perigo, pouco vemos o dentro, o lado encostado à terra, o lado que precisa, de uma forma ou outra, ser protegido. Na verdade, somos todos meio ouriços, somos todos meio casca agressiva, seja para nos mantermos vivos e dignos, seja pelo medo de sofrer mais ainda. A questão fica por conta da falta de equilíbrio de alguns: muitos se disfarçam em espinhos que se transformam em um deles. É o verso de Fernando Pessoa revivendo, reafirmando uma verdade: “Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. / Quando quis tirar a máscara, / Estava pegada à cara. / Quando a tirei e me vi ao espelho, / Já tinha envelhecido.” Esse é o perigo, uma vida se enrolando, se fazendo bola de espinho, se fazendo máscara, para depois descobrir-se velho, descobrir-se azedume e impossibilidade de retorno. Não que tudo tenha que ser sempre doçura, candura ou uma vida rimada no sentimentalismo de Poliana, mas algum bom senso, algum espaço para entregas, para confianças, para o uso delicado e poético da vida temos que ter.

Viver é ter sempre esse cuidado de não deixar que a máscara se apegue à cara, que o espinho não atravesse a pele e atinja algo dentro. Mas também tem o outro, afinal existimos em função do outro. Ninguém é uma ilha, já anuncia a séculos o clichê, somos comunidade, e isso nos ouriça, isso nos faz enrodilhar muitas vezes. Viver é conseguir, de uma maneira ou outra, que o enrodilhamento, que o espinhamento, não seja total, não seja para todo o sempre, não seja a única maneira que temos de contato com a pele do outro. As defesas são justificáveis, o problema se estabelece quando defesas se transformam em ataque, ou quando o ataque é a melhor defesa, dai as relações se estremessem, daí somos apenas espinhos nas bocas dos cães, nada mais. Toda a delicadeza, toda a maciez se perdeu, pois deixamos nos outros apenas nossa casca, nossa máscara, nossa dor apegada à cara. Mostrar o rosto verdadeiro, mostrar o dentro do corpo, muitas vezes, é um ato bem mais corajoso e libertador do que nos protegermos com os espinhos, mesmo que para isso tenhamos que baixar as defesas, tenhamos sair um pouco da zona de segurança e invadirmos, frágeis e delicados, o desconhecido.

(Texto publicado com a autorização do autor)


quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

O castelo em forma de nave, de Rogel Samuel


Rogel Samuel, Doutor em Letras, Professor aposentado da Pós da UFRJ, poeta, romancista, cronista e webjornalista, escreve "O castelo em forma de nave" - crônica a respeito do soneto "Infinda Solidão", de Márcia Sanchez Luz.


Outros links para a crônica:

http://www.dilsonlages.com.br/home.asp
http://www.45graus.com.br/

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Crônicas - Airo Zamoner


REBELDIA
© Airo Zamoner

- Espere aí! Você não está querendo dizer que o que me falta é rebeldia, está?
- Estou!
- Isso é inacreditável! Tive uma vida regrada. Tudo certinho no lugar. Me formei, fiz mestrado, doutorado, pós-doutorado e trabalho diuturnamente em pesquisas vitais para a humanidade... Não sou estúpido pra jogar tudo isso pro alto!
- Estou tentando ajudar a explicar essa sua sensação... Você está aqui agora, em pleno horário de expediente, sentado comigo neste banco público... Por quê?
- Já disse antes! Não me sinto bem!
- E o médico?
- Não é coisa de médico...
- Então, voltamos ao início. Vou falar agora com todas as letras...
- Estou ouvindo...
- Está faltando rebeldia em você!
- Eu sou um cumpridor de normas...
- Nunca pensou em ser um criador de normas?
- Como?
- Que normas você cumpre?
- Todas as normas, ora essa! Administrativas, trânsito, civis, penais, constitucionais...
- E as normas pessoais?
- Que normas pessoais?
- Aquelas que você criou há sei lá quantos anos...
- Eu criei? Tá maluco?
- Eu não! Você, sim! São essas normas que estão incomodando aí dentro de você.
- Que normas são essas? Eu não sou criador de normas...
- É sim! Que norma você segue quando levanta de manhã, antes do horário que você gostaria?
- São minhas obrigações funcionais. Não fui eu quem as criou!
- Quem criou a norma que determinou que você deveria trabalhar nesse emprego? Casar com aquela mulher? Ter esse número de filhos? Fazer esse plano de saúde? Morar nesta cidade? Ter esses amigos? Sentar agora aqui neste banco? Conversar comigo? Obedecer aos seus chefes? Sofrer as chantagens do cargo? Aceitar as chantagens pra não perder alguma coisa?
- ... ?!
- Quem?
- Ora essa! Isso é armadilha! O senhor está me confundindo...
- Não tem confusão, não! Falta rebeldia! Pra você. Pra todo mundo, falta rebeldia! Não falo de rebeldia de palavras. Isso está todo mundo fazendo. Falo de rebeldia mesmo! Virar a mesa, a cadeira, a casa, a cidade. Virar tudo!

- O senhor é doido...Não respondi. Ele ficou quieto. Muito quieto. Braços cruzados, olhando o chão quebrado e sujo da calçada. Não se mexia, nem eu. Foram longos cinco minutos...
- Eu poderia ser professor de surf ao invés de física quântica... Estaria morando na praia...Levantou lerdo como uma lesma. Nem descruzou os braços para andar. Nem tirou os olhos do chão e foi indo...Voltei ao meu jornal. Levei mais de uma hora pra ler tudo. Esperava o engraxate. Ele chegou. Sorria como sempre, exalando alegria:
- Oi, doutor! Vai um lustro aí?Ele ligou o rádio e a música parou de repente.
- Notícia extraordinária! Uma residência de alvenaria, inexplicavelmente esta manhã, virou de alicerces para o ar. Sabe-se que o proprietário é um professor de física quântica. Seus moradores não foram encontrados.

- O doutor está se sentindo bem? Está meio branco!

(Crônica publicada com a autorização do autor)