Um
dia, e não deve demorar muito, vou notar fios brancos no meu cabelo. Pior: um
dia, vou procurar se restaram alguns fios pretos no meu cabelo. Vou sentir
algumas dores nas pernas, ou nas costas, ou a carga da vida será pesada para
mim.
E,
se eu pudesse deixar um recado para essa mulher que eu serei então, eu pediria,
talvez, para que ela fosse doce. Quando eu for velha, desejo manter alguma
alegria, ainda que amargura me seja tentadora, que eu possa ver alguma beleza
na vida.
Que
eu possa ver beleza em mim mesma, mesmo que meu rosto esteja amassado, os olhos
um pouco apagados, que eu me lembre de quanto achava ridículo as mulheres
lotadas de botox,e não caie na armadilha de esticar-me toda, para tentar ser
aquilo que não preciso mais ser. Que eu me lembre desse tempo de hoje, e aceite
essa outra forma de beleza, senão sem dores, com muita dignidade.
Que
eu tenha mãos firmes para passar base e, quiçá delineador, que eu saiba o valor
e o momento de um bom perfume, de um bom penteado, de uma roupa bem cortada.
Que eu não caia na tentação de vestir-me como uma velha, ou – pior – que eu não
caia no ridículo de usar roupas parecidas com as das minhas netas.
Que
eu não implique com a vida, com o tempo, com o meu companheiro. Aliás, se ele
tornar-se irritante, diabético, surdo ou o que quer que seja, desejo lembrar-me
das promessas antigas, do companheirismo de uma vida, das inúmeras vezes em que
eu, jovem, fui irritante e surda, e ele esteve ao meu lado. Que eu possa
relevar as frases repetidas, que eu tenha paciência para as pequenezas dele, e
procure evitar as minhas. Que eu saiba rir da vida, de mim mesma, de nós dois.
Mesmo que as piadas sejam péssimas; as gargalhadas não deveriam tornar-se tão
raras quanto as caminhadas ou as corridas. Que eu possa ainda, fazer meu
companheiro rir, mesmo que me dê uma preguiça danada.
Que
eu não cobre dos meus filhos, netos, amigos, mais do que eles me ofereçam. E
que, em sendo oferecido pouco deles a mim, que isso não me amargure, mesmo que
seja infinitamente injusto e cruel – e deve ser – que eu tenha aceitação e
alegria. Que eu tenha assunto e conhecimento, que eu tenha prazeres e
encantamentos, sabedoria e discernimento.
Que
eu me mantenha lendo bastante, para que eu possa achar assunto nos jornais, nas
revistas, nos novos e nos velhos livros. Senão me restar amigos, ou amores, que
o conhecimento me salve de uma rotina infinitamente chata e comprida.
Que
eu aprenda a apreciar flores, comida, música, ou qualquer uma dessas coisas
oferecidas em abundância pela vida, porque, assim, mesmo que me falte o resto,
ainda terei o gosto ou o som do que me faz feliz.
E,
enfim, se eu pudesse deixar um último recado a essa velhinha que eu serei, eu
pediria que ela lembrasse da menina que foi um dia e que fosse gentil com essa
moça, com seus próprios erros, acertos, escorregadas e tentativas vãs.
Que ela não fosse muito rígida com a vida, e nem com essa jovem abusada e tola
que, um dia, sentou-se num jardim ensolarado, para deixar-lhe uma pequena
carta, cheia de palavras e idéias que, talvez, um dia, não façam,
absolutamente, o menor sentido.
(Do livro "ACABA NÃO, MUNDO")
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