(crônica
publicada no YuBliss)
Em
criança, nunca me dei bem com brincadeiras do faz-de-conta. Achava um reino um
tanto desconfortável, onde a realidade, em confronto com a imaginação,
revelava-se frustrante e insuficiente. Para mim, era muito difícil imaginar,
nas panelinhas, comidinhas inexistentes, ou então ensinar bonecas mudas, que me
olhavam alheias e indiferentes e nunca aprendiam absolutamente nada. Entendo
agora que para mim, na época, o faz-de-conta assemelhava-se a certas
propagandas enganosas que assistimos hoje na publicidade.
O nunca
encenar “teatrinhos” na infância possivelmente marcou muito a minha postura
diante da vida, fazendo-me distinguir no dia a dia fantasia da realidade, não
para dicotomizar-me, mas para aprender a trabalhar com os diversos ângulos de
mim, simultaneamente: eu e meus múltiplos. Nem sempre é fácil na vida real
saber onde acaba o “se” e onde começa o “agora”, talvez porque a realidade, com
suas diversas interpretações, pode ser tão fluida quanto a fantasia. No
entanto, ciente dos meus mundos paralelos, acabei evitando cair na armadilha de
protagonizar papéis na vida real, me tornando uma personagem de mim mesma.
O fato
inconteste é que sempre preferi o diálogo com os livros. Eles me mostravam, por
exemplo, o habitat dos peixes, cheio de cores, formas e magia. Como eu adorava
o colorido mundo submarino com seus animais e sua flora exótica. Antes mesmo de
saber ler, eu me deliciava com as ilustrações, imaginando histórias das
profundezas abissais. Isto era bem diferente do mero faz-de-conta. O oceano
existia, os peixes também, e eu apenas inventava aventuras. Os livros me
revelavam o mundo real, enquanto o faz-de-conta me soava como um palco, em que
só se encenava monólogos. A ficção, portanto, era uma forma de eu própria
transitar pelos universos e não de moldá-los à minha imagem e semelhança. Esta
diferença de perspectiva fazia muita diferença. Sempre fez. Nas fotos coloridas
havia diversos espécimes de animais, inclusive a tartaruga marinha. Pronto:
cheguei onde eu queria.
Falando
no facebook sobre meu micro, lento que nem tartaruga, revelei ao Chico Abelha que
minha relação com elas era muito pouco amistosa, digamos até conflituosa. Então
ele perguntou: “como analisaríamos uma mulher que adora gatos e cachorros, mas
tem horror crônico a tartarugas...? rsrsrssrs! freud explicaria?” Devidamente
instigada, fiquei de escrever sobre o assunto: a rara exceção do meu amor aos
animais. Não se trata porém de desamor, é bem mais complexo: algo me incomoda
profundamente nelas e, ao nos depararmos frente a frente, face a face, olho a
olho, ocorre de imediato o processo atração x rejeição: elas correm (maneira de
dizer) em minha direção e eu corro em direção contrária a delas. Não me importo
com o tamanho: mesmo que você me apresente a mais meiga, suave e menor
tartaruga do mundo na palma de sua mão, provavelmente me sentirei ameaçada.
Lembro-me de que, uma vez, visitei alguém que tinha um cão feroz e uma
tartaruga no quintal, e quando a dona da casa me disse: – “um momento que vou
prender o cachorro”, eu pedi: – “não, por favor, prenda apenas a tartaruga”...
A gargalhada foi geral, porque se tratava de uma tartaruga minúscula,
“inofensiva” segundo sua dona; mas só me senti segura com a tartaruga presa no
banheiro – nem preciso dizer que minha visita demorou o mínimo possível para
não estressar a tartaruguinha.
Volto
ao início: mentira, invenção, teatralização, fantasia, mesmo sendo bem difícil
às vezes de perceber a diferença, elas ficam muito claras se as transponho para
minha ligação (des)afetiva com as tartarugas. Vou dar exemplos: mentira é dizer
que amo tartarugas. Invenção seria alardear que salvei alguma de morrer
devorada por um tubarão; que tirei alguma foto sorrindo acariciando o casco de
alguma delas, é pura teatralização (inclusive, se virem alguma fotografia
assim, saibam que provavelmente ela foi editada...); e, por fim, trata-se de
fantasia quando pratico nado de peito (o tipo de estilo que eu mais gosto) e me
sinto como se fosse uma tartaruga marinha, o que ocorre frequentemente. E aí
realmente entra Freud, meu caro Chico: até meu próprio signo capricórnio (a
cabra marinha) indica que devo ter vindo do mar (meu sonho recorrente é sempre
com ele) antes de pisar na terra. Não que eu queira fazer aqui nenhum tipo de
regressão, mas pode ser até que em alguma encarnação passada, através da
metempsicose transmigratória, eu tenha sido uma tartaruga que acabou virando
sopa... (não entro em hipótese alguma em restaurantes que pescam lagostas ou
peixes vivos, tipo: pesque e pague); daí se explicaria o total incômodo que
sinto ao ver uma tartaruga – revivo a dor ancestral da profanação: ser caçada,
morta, esquartejada e comida publica e impudicamente à mesa? – e também minha
enorme resistência em sentir prazer de degustar quaisquer tipos de “frutos do
mar”...
(Publicado com a autorização da autora)